---------------------------------------------------------------------
19 Fev 08
Por onde comecar?
Não sei. É que não sei mesmo.
Estas 3 semanas que hoje terminam carregam um conjunto enorme de sensacões.
Umas boas, outras nem tanto, mas todas inesquecíveis.
Colocá-las em forma de texto será o próximo desafio.
Mas hoje não. Estou muito cansado e só me apetece olhar.
Boa noite.
Segunda tentativa
Acho que vou comecar pelo princípio.
Se bem me lembro é aí que tudo comeca. No início.
É um pouco difícil descrever sensacões. O sol na pele, o cheiro da montanha, a areia a escorregar nos dedos, o azul turquesa do mar.
O sorriso de uma crianca, a inocência de desconhecer.
Pouco mais do que sensacões encheram a bagagem no regresso.
Ainda assim tentarei descrevê-las.
A Tanzânia é um dos países mais pobres do mundo. Está no top 5 dessa infeliz lista. Essa verdade molda os olhos para a realidade esperada.Os últimos a largar o osso (depois de portugueses, árabes e alemães), foram os ingleses. Em 1961, quando a Tanzânia conseguiu a sua independência, tinha 120 médicos e maior parte da populacão (90% se não me engano) era analfabeta. 120 médicos para mais de 30 milhões de habitantes.A pergunta é óbvia: além de abanar o chicote, o que mais fizeram os ingleses por lá? Nos últimos 40 anos, a aposta do país foi essencialmente a educacão. O ensino básico é óbrigatório. A taxa de iletrados reduziu drasticamente mas durante anos o país gastou 30% do que produzia para pagar a dívida externa. Na década de 90 maior parte dessa dívida foi perdoada e desde então os sucessivos governos têm tentado sair da pobreza extrema. Apostaram essencialmente no turismo e mostraram inteligência na forma como o fizeram. Em vez de construirem campos de golfe ou oásis no deserto, limitaram-se a nacionalizar as riquezas do país: os imensos parques naturais. Com isso conseguem atrair turistas para safaris ou caminhadas na montanha.Isto poderia ser um bom impulso, não fosse a Tanzânia um país africano. A corrupcão existe e é levada à letra. Esse é sem dúvida o grande obstáculo ao desenvolvimento. Não é original, principalmente no continente, mas é um facto.Nos últimos dias que por lá passámos, um visitante ilustre (W. Bush ) criou um novo garrote para o desenvolvimento do país. 700M de dólares muito festejados pelos locais, que passarão as próximas 3 geracões a pagar uma nova dívida externa.No terreno, e no que toca ao turista, a experiência foi avassaladora. De contrastes diria. Alegria ao ver um elefante no seu habitat. Alegria ao assistir a um nascer do sol a 5800m de altura. Felicidade ao ver a fauna marítima e o silêncio reconfortante do índico.Tristeza ao ver uma crianca esfarrapada a estender a mão. Tristeza ao ver condicões de vida. Tristeza ao perceber como se consegue viver no meio de tanta miséria. Peso na consciência ao ver carregadores a levarem os meus 20 Kg montanha acima, de calcões, sem casacos e com ténis calcados no lugar de botas.A vontade é de andar nu. Para acalmar a consciência e ter a certeza que nada mais temos para dar. Fica sempre aquela ilusão de que podemos mudar o mundo. Mas não podemos. Há uma crianca que naquele dia tem um chocolate, uma camisola. Um carregador que ganha um casaco para a chuva. Outro que fica com umas calcas mais quentes. Mas no geral tudo fica na mesma. Uma miséria que nos faz pensar nos desiquilíbrios do mundo. Ao viajar contribuímos para a economia do país. Ao pagar o orcamento pedido para subir uma montanha (orcamentos bem europeus diga-se), espera-se que a parte de leão vá para o desgracado que alomba montanha acima e que faz o negócio acontecer.Mas não. Esse fica com 4 dólares por dia. 4 dólares meus amigos, para quem como eu não liga ao euro, significam 500 paus. 500 paus por dia. Costas vergadas e sempre a subir.
Na estrada torna-se normal ver a polícia mandar parar carros com turistas. O objectivo é claro e fazem-no de forma descarada: pedir dinheiro.
Sem mais nem menos. Ordem sim, mas no bolso de cada um.
Levantando um pouco a cabeca sobre os humanos, tento desligar-me e ver a beleza da paisagem. E que paisagens.Na primeira parte da viagem, o Safari, o que mais me impressionou foi a cratera de Ngorongoro. Há quem lhe chame a oitava maravilha do mundo. Para mim, foi como viver (por dentro) um BBC vida selvagem. Imaginem uma gigantesca cratera onde animais selvagens vivem livremente e onde a lei dominante é a lei da selva. Sobrevive o mais forte. Embora não viva nenhum ser humano na cratera, os Maasai têm permissão para andar por ali com o gado a pastar. Segundo este maasai que aparece aí na foto do post anterior, se os leões não atacarem o gado, eles também não atacam os leões. Se algum leão filar o bofe, lá têm que ir 3 maasai jogar às setas com o leão. Há profissões mais giras, convenhamos.Antes de tudo comecar perguntei ingenuamente: "Existe a hipótese de não ver animais?"No fim corei de vergonha. É necessário desviar o carro para não bater neles. Depois de uns dias a brincar ao National Geographic, saltámos para Zanzibar, mais concretamente para a costa Este, em Matemwe.Zanzibar, um antigo território árabe (depois de um século de domínio português), pertence desde há umas décadas à Tanzânia. Ao contrário do que acontece no continente, aqui, maior parte da populacão é muculmana e a estabilidade é menor, pois o desejo de uma independência total ainda se faz sentir.Em Matemwe julgo que encontrámos um pedaco do paraíso. Pelo menos na forma como eu o imagino. Areia branca, água quente e clara, corais lindíssimos, uma gastronomia (swahili) de chorar por mais. Podia ter ficado por lá mais tempo. Nadar, ler e ver Nemos ter-me-ia enchido as medidas por mais umas semanas.Snorkeling, uma mariquice que nunca tinha experimentado também me deixou rendido.Tubo na boca, barbatanas no pés e cabeca dentro de água. Silêncio, tranquilidade, paz, a profundidade dos corais e o colorido dos peixes que parecem não se importar com a minha presenca. Cereja do dia: saltar do barco em alto mar e nadar no meio de golfinhos. Que dia!Passados 5 dias de fabuloso descanso regressámos a Moshi e com vista para o Kilimanjaro iniciámos a parte final da nossa viagem.De 5 possíveis rotas, escolhemos a Machame, mais conhecida como Whiskey (há outra rota denominada coca-cola). A rota escolhida, é das mais difíceis, mas é aquela que permite mais tempo de aclimatizacão (isto escreve-se assim?). O maior problema desta subida era a altura extrema a que nos iríamos sujeitar e por isso ter tempo para que o organismo se habitue a funcionar com menos oxigénio era a chave. Na véspera da subida encontrámos um grupo de portugueses que nos aconselhou a tomar um medicamento (diamox - para combater a "doenca da altitude") desde logo. Nós que pensávamos usar o diamox quando a doenca (vómitos, dores de cabeca, etc) aparecesse, resolvemos seguir o conselho dos patrícios. Cheira-me que foi o que nos safou. Ou pelo menos a mim que tenho dores de cabeca como quem come pastéis de nata.Seis dias a subir desde os 1800m até aos desejados 5895m. As dores de cabeca apareceram sim, mas nada que nos impedisse de cumprir o objectivo. Até chegar aos 4600m, andámos por floresta tropical, vales imensos, paredes de rocha, planaltos deslumbrantes. Achei especial piada à névoa. Era bastante personalizada. Ora tapava tudo, ora desaparecia e nos deixava ver as neves do kilimanjaro, para 5 minutos depois voltar a tapar tudo. O momento Kodak aparecia quando a névoa deixava! Também achei piada ao contorcionismo necessário para me lavar numa bacia com 20 cm de diâmetro. Lavadinho sim, o suficiente para não colar. Mais não dava...No fim do 5º dia chegámos ao último acampamento antes da subida ao topo. Dormimos umas horas e comecámos a subida à meia-noite. 8 horas a subir com luzes de mineiro na cabeca. Passo lento como em toda a caminhada. Pole-pole dizem os guias. Devagar, devagarinho. Três passos de gigante e o coracão dispara para a goela. Correr e coisas do género ficam para mais tarde. Sem oxigénio até mastigar cansa.
Já perto do topo o previlégio de ver o sol nascer. Que momento inesquecível. Que vista fabulosa no topo de África. Os glaciares, a cratera (o Kilimanjaro é um vulcão adormecido) e aquela sensacão de estar tão perto do Sol. Depois das fotos da praxe (a que não faltou a da bandeira), mais 3 horas a descer para o acampamento base, 1 horita de sono e mais 4 a descer até aos 3000m onde dormimos. 15 horas no total. Quando a bacia de 20cm chegou eu já estava por tudo...Apesar do esforço físico desta última semana, estas férias trouxeram-me a paz e a tranquilidade que há muito procurava. Regresso de África com a alma cheia, com energia redobrada, com a noção real do que nos separa, com a certeza de que vivo noutro planeta e com uma imensa vontade de voltar ao continente.
Mocambique? Porque não?
Se bem me lembro é aí que tudo comeca. No início.
É um pouco difícil descrever sensacões. O sol na pele, o cheiro da montanha, a areia a escorregar nos dedos, o azul turquesa do mar.
O sorriso de uma crianca, a inocência de desconhecer.
Pouco mais do que sensacões encheram a bagagem no regresso.
Ainda assim tentarei descrevê-las.
A Tanzânia é um dos países mais pobres do mundo. Está no top 5 dessa infeliz lista. Essa verdade molda os olhos para a realidade esperada.Os últimos a largar o osso (depois de portugueses, árabes e alemães), foram os ingleses. Em 1961, quando a Tanzânia conseguiu a sua independência, tinha 120 médicos e maior parte da populacão (90% se não me engano) era analfabeta. 120 médicos para mais de 30 milhões de habitantes.A pergunta é óbvia: além de abanar o chicote, o que mais fizeram os ingleses por lá? Nos últimos 40 anos, a aposta do país foi essencialmente a educacão. O ensino básico é óbrigatório. A taxa de iletrados reduziu drasticamente mas durante anos o país gastou 30% do que produzia para pagar a dívida externa. Na década de 90 maior parte dessa dívida foi perdoada e desde então os sucessivos governos têm tentado sair da pobreza extrema. Apostaram essencialmente no turismo e mostraram inteligência na forma como o fizeram. Em vez de construirem campos de golfe ou oásis no deserto, limitaram-se a nacionalizar as riquezas do país: os imensos parques naturais. Com isso conseguem atrair turistas para safaris ou caminhadas na montanha.Isto poderia ser um bom impulso, não fosse a Tanzânia um país africano. A corrupcão existe e é levada à letra. Esse é sem dúvida o grande obstáculo ao desenvolvimento. Não é original, principalmente no continente, mas é um facto.Nos últimos dias que por lá passámos, um visitante ilustre (W. Bush ) criou um novo garrote para o desenvolvimento do país. 700M de dólares muito festejados pelos locais, que passarão as próximas 3 geracões a pagar uma nova dívida externa.No terreno, e no que toca ao turista, a experiência foi avassaladora. De contrastes diria. Alegria ao ver um elefante no seu habitat. Alegria ao assistir a um nascer do sol a 5800m de altura. Felicidade ao ver a fauna marítima e o silêncio reconfortante do índico.Tristeza ao ver uma crianca esfarrapada a estender a mão. Tristeza ao ver condicões de vida. Tristeza ao perceber como se consegue viver no meio de tanta miséria. Peso na consciência ao ver carregadores a levarem os meus 20 Kg montanha acima, de calcões, sem casacos e com ténis calcados no lugar de botas.A vontade é de andar nu. Para acalmar a consciência e ter a certeza que nada mais temos para dar. Fica sempre aquela ilusão de que podemos mudar o mundo. Mas não podemos. Há uma crianca que naquele dia tem um chocolate, uma camisola. Um carregador que ganha um casaco para a chuva. Outro que fica com umas calcas mais quentes. Mas no geral tudo fica na mesma. Uma miséria que nos faz pensar nos desiquilíbrios do mundo. Ao viajar contribuímos para a economia do país. Ao pagar o orcamento pedido para subir uma montanha (orcamentos bem europeus diga-se), espera-se que a parte de leão vá para o desgracado que alomba montanha acima e que faz o negócio acontecer.Mas não. Esse fica com 4 dólares por dia. 4 dólares meus amigos, para quem como eu não liga ao euro, significam 500 paus. 500 paus por dia. Costas vergadas e sempre a subir.
Na estrada torna-se normal ver a polícia mandar parar carros com turistas. O objectivo é claro e fazem-no de forma descarada: pedir dinheiro.
Sem mais nem menos. Ordem sim, mas no bolso de cada um.
Levantando um pouco a cabeca sobre os humanos, tento desligar-me e ver a beleza da paisagem. E que paisagens.Na primeira parte da viagem, o Safari, o que mais me impressionou foi a cratera de Ngorongoro. Há quem lhe chame a oitava maravilha do mundo. Para mim, foi como viver (por dentro) um BBC vida selvagem. Imaginem uma gigantesca cratera onde animais selvagens vivem livremente e onde a lei dominante é a lei da selva. Sobrevive o mais forte. Embora não viva nenhum ser humano na cratera, os Maasai têm permissão para andar por ali com o gado a pastar. Segundo este maasai que aparece aí na foto do post anterior, se os leões não atacarem o gado, eles também não atacam os leões. Se algum leão filar o bofe, lá têm que ir 3 maasai jogar às setas com o leão. Há profissões mais giras, convenhamos.Antes de tudo comecar perguntei ingenuamente: "Existe a hipótese de não ver animais?"No fim corei de vergonha. É necessário desviar o carro para não bater neles. Depois de uns dias a brincar ao National Geographic, saltámos para Zanzibar, mais concretamente para a costa Este, em Matemwe.Zanzibar, um antigo território árabe (depois de um século de domínio português), pertence desde há umas décadas à Tanzânia. Ao contrário do que acontece no continente, aqui, maior parte da populacão é muculmana e a estabilidade é menor, pois o desejo de uma independência total ainda se faz sentir.Em Matemwe julgo que encontrámos um pedaco do paraíso. Pelo menos na forma como eu o imagino. Areia branca, água quente e clara, corais lindíssimos, uma gastronomia (swahili) de chorar por mais. Podia ter ficado por lá mais tempo. Nadar, ler e ver Nemos ter-me-ia enchido as medidas por mais umas semanas.Snorkeling, uma mariquice que nunca tinha experimentado também me deixou rendido.Tubo na boca, barbatanas no pés e cabeca dentro de água. Silêncio, tranquilidade, paz, a profundidade dos corais e o colorido dos peixes que parecem não se importar com a minha presenca. Cereja do dia: saltar do barco em alto mar e nadar no meio de golfinhos. Que dia!Passados 5 dias de fabuloso descanso regressámos a Moshi e com vista para o Kilimanjaro iniciámos a parte final da nossa viagem.De 5 possíveis rotas, escolhemos a Machame, mais conhecida como Whiskey (há outra rota denominada coca-cola). A rota escolhida, é das mais difíceis, mas é aquela que permite mais tempo de aclimatizacão (isto escreve-se assim?). O maior problema desta subida era a altura extrema a que nos iríamos sujeitar e por isso ter tempo para que o organismo se habitue a funcionar com menos oxigénio era a chave. Na véspera da subida encontrámos um grupo de portugueses que nos aconselhou a tomar um medicamento (diamox - para combater a "doenca da altitude") desde logo. Nós que pensávamos usar o diamox quando a doenca (vómitos, dores de cabeca, etc) aparecesse, resolvemos seguir o conselho dos patrícios. Cheira-me que foi o que nos safou. Ou pelo menos a mim que tenho dores de cabeca como quem come pastéis de nata.Seis dias a subir desde os 1800m até aos desejados 5895m. As dores de cabeca apareceram sim, mas nada que nos impedisse de cumprir o objectivo. Até chegar aos 4600m, andámos por floresta tropical, vales imensos, paredes de rocha, planaltos deslumbrantes. Achei especial piada à névoa. Era bastante personalizada. Ora tapava tudo, ora desaparecia e nos deixava ver as neves do kilimanjaro, para 5 minutos depois voltar a tapar tudo. O momento Kodak aparecia quando a névoa deixava! Também achei piada ao contorcionismo necessário para me lavar numa bacia com 20 cm de diâmetro. Lavadinho sim, o suficiente para não colar. Mais não dava...No fim do 5º dia chegámos ao último acampamento antes da subida ao topo. Dormimos umas horas e comecámos a subida à meia-noite. 8 horas a subir com luzes de mineiro na cabeca. Passo lento como em toda a caminhada. Pole-pole dizem os guias. Devagar, devagarinho. Três passos de gigante e o coracão dispara para a goela. Correr e coisas do género ficam para mais tarde. Sem oxigénio até mastigar cansa.
Já perto do topo o previlégio de ver o sol nascer. Que momento inesquecível. Que vista fabulosa no topo de África. Os glaciares, a cratera (o Kilimanjaro é um vulcão adormecido) e aquela sensacão de estar tão perto do Sol. Depois das fotos da praxe (a que não faltou a da bandeira), mais 3 horas a descer para o acampamento base, 1 horita de sono e mais 4 a descer até aos 3000m onde dormimos. 15 horas no total. Quando a bacia de 20cm chegou eu já estava por tudo...Apesar do esforço físico desta última semana, estas férias trouxeram-me a paz e a tranquilidade que há muito procurava. Regresso de África com a alma cheia, com energia redobrada, com a noção real do que nos separa, com a certeza de que vivo noutro planeta e com uma imensa vontade de voltar ao continente.
Mocambique? Porque não?