domingo, 15 de novembro de 2009

Tanzânia

Para mim não existe o conceito de "viagem da vida". Defendo que a melhor é sempre a próxima. Mas há viagens que nos trazem momentos únicos, especiais, marcantes e inesquecíveis. Há, sem qualquer sombra de dúvida, destinos que deixam mais marcas do que outros. A Tanzânia é um desses casos. Em fevereiro de 2008 embarquei numa pequena aventura dividida em três partes: safari, subida ao ponto mais alto de África (Kilimanjaro) e sopas e descanso numa praia do Índico (Zanzibar). Na altura escrevi sobre isso no meu outro blogue. Acho que não há relato mais verdadeiro do que aquele feito em cima do acontecimento. Resolvi por isso recuperar a crónica aqui na Estacão Central.
---------------------------------------------------------------------

19 Fev 08

Por onde comecar?
Não sei. É que não sei mesmo.
Estas 3 semanas que hoje terminam carregam um conjunto enorme de sensacões.
Umas boas, outras nem tanto, mas todas inesquecíveis.
Colocá-las em forma de texto será o próximo desafio.
Mas hoje não. Estou muito cansado e só me apetece olhar.
Boa noite.






































































20 Fev 08
Segunda tentativa
Acho que vou comecar pelo princípio.
Se bem me lembro é aí que tudo comeca. No início.
É um pouco difícil descrever sensacões. O sol na pele, o cheiro da montanha, a areia a escorregar nos dedos, o azul turquesa do mar.
O sorriso de uma crianca, a inocência de desconhecer.
Pouco mais do que sensacões encheram a bagagem no regresso.
Ainda assim tentarei descrevê-las.
A Tanzânia é um dos países mais pobres do mundo. Está no top 5 dessa infeliz lista. Essa verdade molda os olhos para a realidade esperada.Os últimos a largar o osso (depois de portugueses, árabes e alemães), foram os ingleses. Em 1961, quando a Tanzânia conseguiu a sua independência, tinha 120 médicos e maior parte da populacão (90% se não me engano) era analfabeta. 120 médicos para mais de 30 milhões de habitantes.A pergunta é óbvia: além de abanar o chicote, o que mais fizeram os ingleses por lá? Nos últimos 40 anos, a aposta do país foi essencialmente a educacão. O ensino básico é óbrigatório. A taxa de iletrados reduziu drasticamente mas durante anos o país gastou 30% do que produzia para pagar a dívida externa. Na década de 90 maior parte dessa dívida foi perdoada e desde então os sucessivos governos têm tentado sair da pobreza extrema. Apostaram essencialmente no turismo e mostraram inteligência na forma como o fizeram. Em vez de construirem campos de golfe ou oásis no deserto, limitaram-se a nacionalizar as riquezas do país: os imensos parques naturais. Com isso conseguem atrair turistas para safaris ou caminhadas na montanha.Isto poderia ser um bom impulso, não fosse a Tanzânia um país africano. A corrupcão existe e é levada à letra. Esse é sem dúvida o grande obstáculo ao desenvolvimento. Não é original, principalmente no continente, mas é um facto.Nos últimos dias que por lá passámos, um visitante ilustre (W. Bush ) criou um novo garrote para o desenvolvimento do país. 700M de dólares muito festejados pelos locais, que passarão as próximas 3 geracões a pagar uma nova dívida externa.No terreno, e no que toca ao turista, a experiência foi avassaladora. De contrastes diria. Alegria ao ver um elefante no seu habitat. Alegria ao assistir a um nascer do sol a 5800m de altura. Felicidade ao ver a fauna marítima e o silêncio reconfortante do índico.Tristeza ao ver uma crianca esfarrapada a estender a mão. Tristeza ao ver condicões de vida. Tristeza ao perceber como se consegue viver no meio de tanta miséria. Peso na consciência ao ver carregadores a levarem os meus 20 Kg montanha acima, de calcões, sem casacos e com ténis calcados no lugar de botas.A vontade é de andar nu. Para acalmar a consciência e ter a certeza que nada mais temos para dar. Fica sempre aquela ilusão de que podemos mudar o mundo. Mas não podemos. Há uma crianca que naquele dia tem um chocolate, uma camisola. Um carregador que ganha um casaco para a chuva. Outro que fica com umas calcas mais quentes. Mas no geral tudo fica na mesma. Uma miséria que nos faz pensar nos desiquilíbrios do mundo. Ao viajar contribuímos para a economia do país. Ao pagar o orcamento pedido para subir uma montanha (orcamentos bem europeus diga-se), espera-se que a parte de leão vá para o desgracado que alomba montanha acima e que faz o negócio acontecer.Mas não. Esse fica com 4 dólares por dia. 4 dólares meus amigos, para quem como eu não liga ao euro, significam 500 paus. 500 paus por dia. Costas vergadas e sempre a subir.
Na estrada torna-se normal ver a polícia mandar parar carros com turistas. O objectivo é claro e fazem-no de forma descarada: pedir dinheiro.
Sem mais nem menos. Ordem sim, mas no bolso de cada um.
Levantando um pouco a cabeca sobre os humanos, tento desligar-me e ver a beleza da paisagem. E que paisagens.Na primeira parte da viagem, o Safari, o que mais me impressionou foi a
cratera de Ngorongoro. Há quem lhe chame a oitava maravilha do mundo. Para mim, foi como viver (por dentro) um BBC vida selvagem. Imaginem uma gigantesca cratera onde animais selvagens vivem livremente e onde a lei dominante é a lei da selva. Sobrevive o mais forte. Embora não viva nenhum ser humano na cratera, os Maasai têm permissão para andar por ali com o gado a pastar. Segundo este maasai que aparece aí na foto do post anterior, se os leões não atacarem o gado, eles também não atacam os leões. Se algum leão filar o bofe, lá têm que ir 3 maasai jogar às setas com o leão. Há profissões mais giras, convenhamos.Antes de tudo comecar perguntei ingenuamente: "Existe a hipótese de não ver animais?"No fim corei de vergonha. É necessário desviar o carro para não bater neles. Depois de uns dias a brincar ao National Geographic, saltámos para Zanzibar, mais concretamente para a costa Este, em Matemwe.Zanzibar, um antigo território árabe (depois de um século de domínio português), pertence desde há umas décadas à Tanzânia. Ao contrário do que acontece no continente, aqui, maior parte da populacão é muculmana e a estabilidade é menor, pois o desejo de uma independência total ainda se faz sentir.Em Matemwe julgo que encontrámos um pedaco do paraíso. Pelo menos na forma como eu o imagino. Areia branca, água quente e clara, corais lindíssimos, uma gastronomia (swahili) de chorar por mais. Podia ter ficado por lá mais tempo. Nadar, ler e ver Nemos ter-me-ia enchido as medidas por mais umas semanas.Snorkeling, uma mariquice que nunca tinha experimentado também me deixou rendido.Tubo na boca, barbatanas no pés e cabeca dentro de água. Silêncio, tranquilidade, paz, a profundidade dos corais e o colorido dos peixes que parecem não se importar com a minha presenca. Cereja do dia: saltar do barco em alto mar e nadar no meio de golfinhos. Que dia!Passados 5 dias de fabuloso descanso regressámos a Moshi e com vista para o Kilimanjaro iniciámos a parte final da nossa viagem.De 5 possíveis rotas, escolhemos a Machame, mais conhecida como Whiskey (há outra rota denominada coca-cola). A rota escolhida, é das mais difíceis, mas é aquela que permite mais tempo de aclimatizacão (isto escreve-se assim?). O maior problema desta subida era a altura extrema a que nos iríamos sujeitar e por isso ter tempo para que o organismo se habitue a funcionar com menos oxigénio era a chave. Na véspera da subida encontrámos um grupo de portugueses que nos aconselhou a tomar um medicamento (diamox - para combater a "doenca da altitude") desde logo. Nós que pensávamos usar o diamox quando a doenca (vómitos, dores de cabeca, etc) aparecesse, resolvemos seguir o conselho dos patrícios. Cheira-me que foi o que nos safou. Ou pelo menos a mim que tenho dores de cabeca como quem come pastéis de nata.Seis dias a subir desde os 1800m até aos desejados 5895m. As dores de cabeca apareceram sim, mas nada que nos impedisse de cumprir o objectivo. Até chegar aos 4600m, andámos por floresta tropical, vales imensos, paredes de rocha, planaltos deslumbrantes. Achei especial piada à névoa. Era bastante personalizada. Ora tapava tudo, ora desaparecia e nos deixava ver as neves do kilimanjaro, para 5 minutos depois voltar a tapar tudo. O momento Kodak aparecia quando a névoa deixava! Também achei piada ao contorcionismo necessário para me lavar numa bacia com 20 cm de diâmetro. Lavadinho sim, o suficiente para não colar. Mais não dava...No fim do 5º dia chegámos ao último acampamento antes da subida ao topo. Dormimos umas horas e comecámos a subida à meia-noite. 8 horas a subir com luzes de mineiro na cabeca. Passo lento como em toda a caminhada. Pole-pole dizem os guias. Devagar, devagarinho. Três passos de gigante e o coracão dispara para a goela. Correr e coisas do género ficam para mais tarde. Sem oxigénio até mastigar cansa.
Já perto do topo o previlégio de ver o sol nascer. Que momento inesquecível. Que vista fabulosa no topo de África. Os glaciares, a cratera (o Kilimanjaro é um vulcão adormecido) e aquela sensacão de estar tão perto do Sol. Depois das fotos da praxe (a que não faltou a da bandeira), mais 3 horas a descer para o acampamento base, 1 horita de sono e mais 4 a descer até aos 3000m onde dormimos. 15 horas no total. Quando a bacia de 20cm chegou eu já estava por tudo...Apesar do esforço físico desta última semana, estas férias trouxeram-me a paz e a tranquilidade que há muito procurava. Regresso de África com a alma cheia, com energia redobrada, com a noção real do que nos separa, com a certeza de que vivo noutro planeta e com uma imensa vontade de voltar ao continente.
Mocambique? Porque não?