Quando penso nas cidades que visitei e tento eleger a que mais me marcou, acabo sempre por pensar em Havana. Não é a mais bonita cidade que alguma vez vi. Não é organizada, cuidada ou limpa. Em alguns sítios nem agradável é, contudo foi a mais marcante das que, até ao presente dia, vi.
Havana é uma cidade mítica. Independentemente do que vemos e ouvimos hoje, Havana tem um passado feito de momentos que ficaram para a eternidade. Tem corrupcão, tem vícios, tem crime, tem ritmo, tem jogos políticos, tem revolucão, tem cor, tem arte, tem gastronomia, tem salsa, tem o Compay. A história desta ilha é absolutamente fascinante. Seja qual for a ideologia política do visitante é impossível não ceder aos encantos de um sítio que tem o seu lugar bem vincado na história do séc.XX. Desde a independência de Espanha (final do séc. XIX) até à queda da URSS, Cuba fez correr tinta um pouco por todo o lado, sempre com a sua capital no centro de cada acontecimento.
Para mim, reconheco, visitar Cuba era muito mais do que ir para a praia nas Caraíbas. Comecei a ir à festa do Avante quando tinha 14 anos e habituei-me desde muito novo a ouvir as palavras de ordem pela causa cubana entre aquele mar de t-shirts do Che Guevara.
As opiniões dividem-se. Há quem escreva sobre Che Guevara ou Fidel Castro como loucos e assassinos, há quem os eleve a heróis. Não os vejo como "talhantes" mas há certamente gente mais lúcida neste mundo. Continuo a achar que a revolucão de Cuba foi um daqueles momentos que a história nunca apagará. Um bando de barbudos, perdidos e esfomeados no meio da serra que, com crescente apoio das populacões, conseguiram varrer a ilha desde Santiago até à entrada triunfante de Che em Santa Clara (a partir daqui sabia-se que Havana iria cair). Poderemos sempre discutir quais as verdadeiras razões de Fidel para liderar o golpe. De facto podemos. O que não podemos contudo é divagar sobre a Cuba que existia antes de 1959. Um país de analfabetos, uma colónia usada pelos EUA para prostituicão e lavagem de dinheiro. Empresas americanas que controlavam toda a producão e que alimentavam uma classe política corrupta e fantoche, de onde se destacava o sombrio Baptista.
Enquanto isso, os cubanos trabalhavam como escravos e eram pouco mais do que prisioneiros no próprio país. Entre a fome e a miséria. O cenário não era muito difernete daquilo que os europeus faziam nas suas colónias africanas.
Só pelo facto de terminar com isto, a revolucão tem que ser vista como algo bom. Ou pelo menos como um momento que pdoeria abrir novas portas.
E é aqui que as opiniões de dividem.
Depois de ler biografias autorizadas e não-autorizadas vejo-me forcado a concluir que Fidel seguiu o caminho possível e passou os 40 anos seguintes a viver as consequências dessa escolha.
É bom lembrar que a queda de Batista aconteceu em plena Guerra Fria. O primeiro sítio onde Fidel tentou ver reconhecido o novo estado cubano foi exactamente em Washington, na sua primeira visita. O presidente dessa altura (Eisenhower se não me engano) nem deixou a conversa chegar à sobremesa. Ora...em 1959, se não estavas de um lado, estavas do outro. Cuba precisava de apoio externo. Não o conseguiu em Washington foi procurá-lo em Moscovo.
A partir daí, a história é conhecida. O dinheiro vinha de Moscovo e as regras também. As décadas que se seguiram trouxeram educacão mas não trouxeram liberdade. Foi uma oportunidade perdida.
Ainda assim, quando aterrei em Havana levava na mala alguns mitos mal esclarecidos e também uma secreta esperanca de ver a realidade contrariar algumas teorias.
Mas não. Isso não aconteceu.
Visitei Cuba em 2005. Nessa altura Havana estava dividida em 3 áreas: Havana Velha, Havana Central e Vedado. Não faco ideia se ainda é assim hoje em dia.
Havana Velha é a parte turistica da cidade. Totalmente recuperada, no seu lindíssimo estilo colonionalista espanhol, colorida, limpa, com um polícia em cada esquina e muitos turistas. Nesta parte da cidade ninguém incomoda. É bonita mas não é real. Qualquer abordagem ao turista é feita de forma muito discreta, de forma a que a polícia não veja (tipicamente para vender uma moeda com a cara do Che). O regime sabe que o turista é, desde a queda da URSS, a principal fonte de rendimento e como tal, nada de chatear!
A zona do Vedado (o nome vem do facto de cubanos não terem acesso a essa zona), já não apresenta o mesmo tipo de conservacão mas ainda tem um aspecto decente. As cadeias de hotéis espalharam-se por esta zona. E depois há Havana Central, a parte real da cidade. Casas sem porta ou janela, ventoínhas improvisadas a partir de máquinas de fazer bolos, cabos de electricidade puxados sabe-se lá de onde, criancas na rua a brincar, lixo a céu aberto, um cheiro insuportável com o calor dos trópicos. Nem um turista na rua. Não há inseguranca, eu pelo menos não a senti, mas todos te abordam para tentar qualquer coisa. Levar a casa de um amigo que por acaso trabalha numa fábrica de charutos, oferecer um guia turistico que não quer dinheiro e só está "interessado em saber notícias do mundo exterior" e por aí fora. aliás, a esse propósito há, na minha opinião, uma diferenca enorme entre as geracão mais nova e aquela que nasceu antes da revolucão. Vi miudos (que toda a vida se habituaram a receber ofertas dos turistas) na rua a correr por uma t-shirt ou caneta que, mal recebem o item, olham para ele com uma cara de desprezo enorme. Em alguns casos não é a necessidade que os faz pedir, mas sim o hábito. Já os mais velhos apresentam outra fibra. Nunca me esquecerei da imagem de um senhor que, do alto dos seus 91 anos e na lentidão do passo, vendia amendoins torrados para ganhar a vida. Lembro-me de ver o desconforto nos seus olhos quando não aceitei o troco, umas migalhas em pesos cubanos. A geracão mais nova por seu lado tentou enrolar-me com charutos, visitas, marisco e eu sei lá mais o quê.
Havana foi uma cidade que me emocionou. Conheci um pintor (engenheiro físico de formacão) que me explicou a vida na ilha. A comida, os empregos, a liberdade, as forcas militares. Os cubanos são geralmente magros. Os policias, ou pelo menos muitos deles, apresentavam uma barriguita. Qualquer regime que quer controlar a sua populacão sabe sempre quem é que tem que alimentar primeiro, os que têm acesso às armas. Lembro-me ver este pintor, de quem fiquei amigo, pegar em duas canetas, colocá-las na palma mão simulando uma balanca, enquanto dizia: "é mais ou menos este peso de carne que temos para o mês na nossa racão". Depois de algumas conversas, lembro-me de circular pela praca do museu da revolucão até me sentar num banco olhando em redor. De repente comecei a sentir lágrimas no rosto. Era como se uma ideia de justica social, que eu ainda acreditava ser possível, estivesse a desabar perante os factos. Fiquei com pena daquela gente. E isto é indiferente de qualquer conviccão política. É apenas o realizar que os problemas que se vivem na nossa parte do mundo, nem sempre são tão dramáticos quanto isso. Como tudo na vida, o referencial conta.
O museu da revolucão é algo digno de ser visto. Por várias razões. Todo o seu conteúdo é uma imensa promocão ao regime, como aliás não poderia deixar de ser. Gráficos com a escolaridade antes e depois da revolucão, a roupa que o Fidel usou em tribunal durante o famoso discurso "a história me absolverá". Basta dizer que na entrada do museu está o tanque em que Fidel combateu na invasão da Baía dos Porcos. Um pouco mais atrás está o Granma, o barco que trouxe Fidel do México para Cuba, com Che Guevara e os planos para a revolucão a bordo.
Outro dos dados estatísticos orgulhosamente apresentado é o do desemprego. Raspava a bonita percentagem de zero (na altura, agora já perceberam que não podem ser todos funcionários públicos). Nem era preciso um esforco muito grande para perceber como é que conseguiam aqueles números. Bastava olhar para aquele museu. Estava quase vazio e em cada sala estavam 2 ou 3 empregados, sentados, encostados a uma parede, sem nada, absolutamente nada para fazer.
Um dos problemas graves de Cuba é o sistema financeiro em que vive. Ou melhor...os sistemas financeiros. Há o peso cubano, que vale entre zero e nada, e o euro/dólar. O cerne da questão é simples de compreender. Quem recebe em pesos cubanos está desgracado. Era por isso normal ver um médico, que ganharia 4 dólares por mês num hospital público, a carregar malas em hotéis.
Chegar à moeda estrangeira é conseguir entrar num supermercado normal e não ficar limitado às lojas de conveniência do Estado.
Nos quiosques onde os cubanos comem, uma refeicão (completa com um copo de sumo) custa 1 euro. Para um europeu é de graca. Para quem só tem pesos cubanos nem tanto.
Nunca vi turistas perto destes quiosques mas a "roupa velha" na caixa de cartão não era nada má.
O embargo que Cuba vive há 4 décadas obrigou a um espírito inventivo que não se pode deixar de admirar. Cuba produz os seus próprios medicamentos. Enquanto Chávez usa barris de petróleo como moeda de troca, Fidel usa equipas de médicos. Electrodomésticos, pecas de carros, brinquedos. Tudo se transforma em qualquer coisa mais.
Uma das grandes diferencas entre Cuba e outros países pobres é exactamente o nível de educacão da populacão. A história ensina que o desenvolvimento de dois países pobres será diferenciado e mais rápido em favor daquele que tiver uma populacão com melhores qualificacões. Veja-se Portugal vs qualquer país de leste.
Em Cuba vai-se abrir uma nova janela de oportunidade. Oxalá seja aproveitada desta vez.
Outras das coisas que me fascinou foi a comida. Aquele mistura de carne, feijão, arroz, fruta, peixe, marisco. África com o Caribe. Delicioso.
Cuba foi também a minha primeira tentativa de ver uma praia de postal. Desloquei-me a Trinidad, uma cidade património da Unesco, muito bonita e cuidada, que conserva ainda o estilo deixado pelos espanhóis e banhada pelo mar do Caribe. O tempo não colaborou e o mar que vi não aparece em nenhum postal. Talvez Maio não tenha sido uma boa escolha...
Tive ainda tempo para uma rápida passagem por Pinal del Rio, para visitar uma fábrica de "puros" e por Vinales, onde teoricamente estão umas gravuras pré-históricas. Para mim, o mais interessante neste salto a Pinar del Rio foi a componente social da coisa. Enquanto a guia turistica desbobinava a fita do regime com pérolas do género "o cubano é forte e no fim do dia tem sempre alegria e comida na mesa", as funcionárias da fábrica, discretamente entre cada folha de tabaco enrolada, mostravam a moeda do Che Guevara na esperanca de que algum turista a trocasse por dólares. Mas sempre de forma alegre....
Havana tem pontos de interesse clássicos. Tão clássicos que ultrapassam os 1000km da ilha.
O mítico malécon, a bodeguita del médio onde Hemingway ganhava inspiracão, o capitólio que "não é igual ao americano porque tem mais uma fila de tijolos para ser mais alto", o Hotel Nacional onde Al Capone passava férias e Compay Segundo tocava.
Do ponto de vista turístico Cuba é um pequeno paraíso. Está tudo ali. O mar, a história, os ritmos.
O ritmo. Faz parte. Acordam a dancar e adormecem a cantar. Sempre gostei dos ritmos cubanos. Quando vim para a Suécia comecei a ter aulas de salsa, influenciado entre outras coisas, por esta viagem. Está na altura de voltar e ver se não tropeco nos pés.
Ps - As fotografias que ilustram o texto pertencem ao meu amigo Nuno Simões que gentilmente as cedeu para este efeito. As minhas, em versão papel, estão algures numa caixa desse lado.
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